A Jornada Idíllica Até Glasgow

     Cascais, 22 de outubro, a nossa equipa como as restantes duas equipas, partiu dali, mas ficámos para entrevistar não só as pessoas de lá, como a Vereadora da Câmara Municipal, Joana Balsemão, que de toda a sua generosidade e simpatia nos deu a conhecer os passos significativos de Cascais para um futuro sustentável. Já era de noite há umas horas quando pegámos nas malas e as colocámos no primeiro autocarro. Rumo a Madrid, numa viagem de mais de 10 horas que pareceu de três dias, era a primeira de muitas, o entusiasmo foi grande e acabou com um de nós a dormir no chão, pois o ressonar que nos envolvia os ouvidos era demasiado alto para entrar no mundo dos sonhos, por mais sono que se tivesse. Chegámos de manhã com uma estatística complicada, metade tinha dormido pouco e mal e a outra metade não tinha dormido. Assim foi, chegados à capital espanhola percorremos poucos metros, felizmente, até encontrar o hostel, marcado com poucas horas de antecedência mas mal sabíamos nós que aquele seria o melhor hostel onde iríamos estar ao longo dos mais de dez dias. Já em solo internacional e com metade da equipa abatida de sono, dividimo-nos em etapas, a primeira arranjar pequeno-almoço, e a segunda, organizar tudo já para os seguintes dias. Pão com queijo, leite de soja e iogurte haveriam de nos durar como refeição por umas boas cinco horas. Passado vox pops na rua, participação em manifestação pela igualdade de género e tentativa de descanso no hall do hostel, almoçámos a refeição que pareceu um típico almoço de sábado com amigos, mas tínhamos em mãos a responsabilidade de pôr em prática a viagem mais sustentável das nossas vidas. Após a refeição que nos encheu o estômago e a alma, decidimos continuar um dos nossos objetivos, sensibilizar a população sobre o projeto Climes To Go, e que melhor maneira do que no meio de uma das maiores praças de Madrid? 

 

            Decidimos então pegar num pedaço grande de cartão, pedido numa loja, e uma caneta grossa, a mensagem? “NECESITAMOS CLIMAS”, um pedido urgente à moeda que tínhamos de poupar e que traçava cada passo que dávamos, um clima equivalia a dois euros, 26.18 minutos, mil litros de consumo de água direto e 6.67 kg de CO2. Ali estávamos nós, na Porta do Sol, com centenas de pessoas a passear e a aproveitar a tarde solarenga, e, vestindo o casaco da Climes erguemos o cartaz que logo captou a atenção dos que passavam. Muitos leram, alguns perguntaram e outros fotografaram, tínhamos conseguido com sucesso não passar despercebidos e criar burburinho pelo clima e pelos Climas. A tarde terminou com um passeio pelos Jardins do Retiro, onde sentados num banco ficámos apenas a falar e a observar as pessoas ao nosso redor, mas sobretudo apercebermo-nos da aventura onde tínhamos entrado e o que vinha ainda pela frente. Chegados ao hostel depois do dia preenchido, preparámo-nos para jantar e tipicamente, porque estávamos em Espanha, acabámos a comer tapas e sem dúvida foi um dos privilégios ao longo da viagem, podermos visitar os países e aproveitar mesmo que por pouco tempo, a gastronomia e os sítios. 

Já no hostel, e porque passámos o dia inteiro a falar nisso, sabíamos que nos esperava um cenário no mínimo cómico, um homem que tinha passado o dia inteiro no quarto onde mais sete pessoas iriam dormir, de cada vez que aparecíamos, ele atendia uma chamada, mas pior, ele ressonava, soubemos isto pelos breves 20 segundos em que ele adormeceu, e nós precisávamos daquela noite de sono que nos deviam desde a viagem de autocarro. Com medo do que nos esperava, chegámos ao quarto à uma da manhã já mentalizados da noite infernal, mas foi aí que toda a nossa previsão se alterou, o homem saiu do quarto. Eram seis da manhã quando eu acordo com o que era uma chamada telefónica a alto e bom som, era o homem, ele tinha voltado e na cama por cima de mim, falava como se estivesse sozinho em casa. Eu tento falar com ele, em inglês, ele só falava espanhol, o homem ignora-me, eu desisto até porque começo a ouvir os restantes a mexerem-se nas camas com o barulho, estavam todos a acordar, eu meto-me na casa-de-banho dentro do quarto e fico ouvir atentamente o desenrolar da ação, as espanholas acordam também e começam a refilar com o homem, o Tomás, o nosso designer e fotógrafo, grita “Tio!” estão todos em alvoroço, confesso que mil e um cenários começam a surgir porque o homem eram mesmo sinistro, saio da casa-de-banho e o Guilherme, o nosso capitão de equipa e engenheiro biomédico, estava sentado na cama a discutir com ele, técnica que cedo percebemos logo no primeiro autocarro  que era recorrente para o Guilherme em situações de confronto. Todos tentávamos perceber como é que este homem não percebia regras básicas de comunhão principalmente de madrugada, ele começou a desculpar-se de que não sabia e que não fez por mal, mas com um dormitório todo acordado não havia muito a fazer e assim pegou nas suas coisas e foi-se finalmente embora. Retomámos o sono. Segundo dia oficial de viagem e último em Madrid, fizemos o checkout e pusemos malas às costas, o peso, esse parecia aumentar a cada embalo que fazíamos para levantar a mala. Tomámos o mesmo pequeno-almoço enquanto o sol nos iluminava os rostos, prontos para mais um dia de produtividade, era domingo e decidimos rumar aos mercados, La Latina tinha um dos maiores mercados que já tínhamos visto, milhares de pessoas enchiam as ruas, o ritmo era traçado lentamente pelos passos dos que iam à frente. Como estávamos com as malas decidimos dividir-nos enquanto eles ficavam a guardar os pertences eu e a Flávia, a nossa ilustradora, iniciámos a excursão pelas ruas inundadas de pessoas, precisávamos de encontrar algo ou alguém com uma mensagem, algo que se destacasse em termos de sustentabilidade, foi difícil não por não haver esse algo ou alguém, mas porque aquele mercado era o ganha-pão de muitos dos que vendiam ali, e o foco era vender. Parámos junto a uma banca repleta de quadros lindos, um pai já velhote e o filho, eram os autores por trás das obras. Encontrámos os primeiros entrevistados, e começámos a falar sobre a vida de cada um, a história do pai era particularmente cativante, um pastor de ovelhas que aos 24 anos decidiu sair do campo e mudar-se para a capital e seguir o sonho da pintura, a maior parte dos quadros era dele, e claramente o senhor era o foco da banca, o filho designer e fotógrafo, juntava-se ao pai e o orgulho era visível. Mais à frente tentámos falar com o dono de uma das galerias de arte mais antigas da zona, estavam ali há mais de cinquenta anos, mas não conseguimos arrancar mais do que algumas palavras de cansaço e do que importava ali, vender e vender. 

 

            E foi a voltar, já a aceitar as poucas entrevistas que tínhamos conseguido, que nos deparámos com uma loja de slow fashion, com um exterior estético, de simplicidade e modernidade, estava Mário Cruz, com a sua marca do mesmo nome, perguntámos se seria possível fazermos algumas perguntas e filmar, e o Mário aceitou. Foram quinze minutos do que foi uma das mais importantes entrevistas ao longo da viagem por Madrid e a explicação do trabalho importantíssimo do Mário pela sustentabilidade através da sua marca e das iniciativas à volta desta, nomeadamente, a ligação com a associação APRAMP, uma associação para vítimas de exploração sexual, produzindo assim roupas para a marca e ajudando a associação através de trabalho remunerado. 

 

            Próxima estação, Bilbao, mais um autocarro, desta vez apenas cinco horas, e chegámos de noite, já os supermercados fechados, fizemos check-in no hostel, desta vez com quarto só para os quatro, comemos kebabs e hambúrgueres, de certeza a refeição mais fast food que tivemos, mas dada as poucas opções teríamos de aceitar as nossas escolhas gastronómicas. A noite foi repleta de riso mas cedo acabou pois o cansaço era muito. Na manhã seguinte, dirigimo-nos ao centro da cidade, o Guilherme sabia de um café muito bom, devo admitir que foi dos melhores lattes que já bebi. O café acabámos por saber sem saber que era também parte da mudança para a sustentabilidade, usando produtos orgânicos de uma marca própria, e fazendo tudo de forma caseira, os móveis eram também usados e peças antigas, foi uma refeição quente e confortável, iniciando assim o dia com um sorriso no estômago. Dada a natureza rápida da viagem o tempo não estava do nosso lado e tínhamos empresas que queríamos visitar, nomeadamente a Aclima, uma organização referência no sector ambiental do País Basco. Ao chegar à Aclima sabíamos da pouca probabilidade de terem algum tempo para nós, mas fomos bem recebidos, e pudemos falar com um dos managers, Mikael Ibarra, que nos explicou o conceito e trabalho da Aclima, no final a Flávia, entregou o que ilustrou rapidamente, um retrato do Mikael, que ficou surpreendido pela rapidez e talento da nossa artista. Antes de irmos embora tirámos uma fotografia com a equipa da Aclima presente. A caminho do almoço, deparámo-nos com uma charcutaria que despertou a nossa atenção, toda pintada de vermelho, e um senhor com um ar bastante característico e uma boina a condizer com a bata, Sr. José era o seu nome, tratava do pimento vermelho sentado numa cadeira de verga. Facilmente falou connosco e deixou-se filmar e entrevistar, o Guilherme assumiu as rédeas e falou com ele sobre o seu negócio e o seu conceito bastante interessante, “Kilómetro Cero”, que consiste em todos os produtos serem arranjados através de mercadores locais, perto do seu negócio, a menos de um quilómetro, tornando tudo perto e pessoal. Imbuídos neste espírito local, almoçámos num restaurante da zona, conhecido pela qualidade e diversidade vegan. Tanto gostámos que repetimos o almoço no dia seguinte. As poucas horas antes de partirmos para Paris no dia seguinte, foram passados a visitar a cidade, em busca de mais pessoas e projetos, e mesmo antes de irmos embora, o ponto alto da viagem concretizou-se, o Guilherme e o Tomás, foram até à Tecnalia logo pela manhã cedo, onde tiveram visita guiada ao centro de investigação e desenvolvimento tecnológico que é referência na Europa e ficaram a conhecer os principais projetos na área da energia  do meio ambiente. Depois e inspirados pela sustentabilidade, foram até à Koopera, um projeto de alma e coração, onde foram muito bem recebidos pelo diretor de marketing, Enrique Osorio, que se emocionou ao falar do que se faz por esta rede de entidades que juntas, lutam pela inclusão social e pelo planeta, com a ajuda da Cáritas

 

        A meia hora de apanharmos o autocarro para Paris, mais uma vez a Flávia superou-se a ela mesma com o seu talento e criou de raiz uma ilustração que acompanhou o objeto que iríamos entregar à Koopera, uma câmara de vídeo de mão que foi salva do lixo para ter uma nova vida e fazer parte da Economia Circular que tínhamos de criar como um dos objetivos de  equipa na nossa viagem até Glasgow. 

          

          Até Paris, fizemos a maior viagem de autocarro, cerca de 12 horas, foi uma viagem difícil, nem que seja porque o banco passou a ser a nossa cama, mas cada pegada contava e queríamos poupar tempo. Chegados a Paris, seis da manhã, ainda de noite cerrada, já a cidade se levantava, havia já quem fizesse exercício, e se dirigia ao trabalho ou à escola. Era quarta-feira em Paris, e a cidade não parava. Cheios de fome e com horas de sono para repor, deixámos as malas no cacifo do próximo hostel, estávamos em Gare du Nord. Começámos a busca pelo melhor pequeno-almoço pelo melhor preço, encontrámos, a primeira pessoa que falou connosco, disse “euf? Oui, oui é pra já”, era português, de Faro, estava em França há cinco anos, e serviu-nos na língua materna. Paris foi o destino com menos entrevistas, um total de zero, mas foi vista como a cidade das decisões importantes, ou não era aquela a última cidade europeia onde passaríamos algum tempo considerável, mas ao menos vimos a Torre Eiffel. Próxima estação: Calais, a cidade francesa fronteira com o Reino Unido, onde apanharíamos o ferry até Dover. Calais era um misto de climas e ritmos, por um lado, tinha todo o ar de fronteira, onde se sabe que ali acaba e começa outra cultura pouco depois, mas depois havia toda a população de lá que tinha a sua vida própria longe de limites geográficos. Em Calais visitámos dois albergues de refugiados, foram visitas intensas e controversas para alguns, não queríamos ser um fardo nem muito menos intrusos que só ali iam ver a desgraça dos outros, falámos com o Antoine no primeiro albergue, um rapaz com a nossa idade, vinte e muitos, que estava ali de coração nas mãos pelo futuro da associação e nos relatou as tentativas do próprio Estado de desmantelar aquele porto de abrigo para quem não tem sequer um país de residência. Foi impossível não ficarmos abalados com aquela realidade que tão perto de nós é vivida com sofrimento e incerteza. O abrigo a seguir foi igualmente realista, mas concluímos que sem alternativas como estes albergues, estas pessoas que arriscam a vida sem medo da morte, estariam em situações piores, ou seriam presas ou retornadas ao inferno de onde fugiram. Estas pessoas podem ao menos ter esperança e dormir numa cama, com refeições servidas e pessoas preocupadas com o seu dia de amanhã.

 

            Desde Calais que as equipas estavam as três juntas, quase que esquecemos a competição, valores mais altos se levantavam. Já em Dover, tivemos apenas tempo de apanhar o autocarro com destino a Londres, e aí separámo-nos novamente. Londres foi rápido, mas era a reta final, a primeira refeição era o que estava disponível à hora a que chegámos, fast food novamente, tivemos tempo de fazer check-in no que foi seguramente o pior hostel em que já tivemos, pelo menos nesta viagem. Um quarto minúsculo numa daquelas casas características britânicas, bastante bonita por fora, mas por dentro era um mundo à parte. Cheio de pessoas que viviam ali, por não terem dinheiro para ter casa na capital e que estavam lá apenas para ganharem dinheiro, estafetas, trabalhadores nas obras e muitos que estavam em transição de vida. Acabámos por fazer parte da história daquele hostel, e passámos algum tempo na zona de refeições onde sem nos apercebermos ocupámos o lugar cativo de um grupo que lá vivia. 

 

            Em Londres, cidade de oportunidades, apenas tivemos uma entrevista, com uma jovem portuguesa, estagiária numa das maiores empresas de design e inovação, acerca da ideologia da empresa onde estava e como trabalhavam a sustentabilidade, e, acabou por nos testemunhar a vida londrina e como o dia-a-dia estava focado em ser mais green. Londres passou depressa e posso falar pela equipa quando digo que teremos saudades do “Meal Deal”, refeições completas por 3 libras, foram muitas dessas. 

 

            E cedo chegámos a Glasgow, literalmente, pois era, mais uma vez seis da manhã, as equipas reuniram-se todas na estação de autocarros e partimos para a segunda parte da viagem e competição, a COP 26.

 

 

 

                                                           Márcia Simões, Fotógrafa

 Equipa Produção e Consumo









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